__________ Itapema, suas histórias... __________

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Chaparral by ITAPEMA CITY

UM BANG-BANG QUE VAI ENTRAR PRA HISTÓRIA DE ITAPEMA CITY.

No ambiente hostil da periferia, sob o calor de domingo na "Favela do Chaparral", fervilha o cotidiano em meio a confusão dos becos sem saída.
- Azedô, ladrão... Eles tomba nóis, ou nóis deita eles... Click, click! Pam... Pam! - Téku Bily fazia pontaria enquanto falava aos outros dois comparsas, orgulhoso da sua pistola 765.
- Nóis vai fazê chove na parada... - Concordou Pretudóla.
- Chove bala! - Emendou Téku. - Quem apanha na cara é pandeiro. - Além do mais, ele não ia arriscar a pele pra vagabundo nenhum tirar proveito. Se ficaram com mais na divisão da treta é porque mereciam.
Da cozinha ouviu-se o espatifar de cacarecos. Pretudóla esticou o pescoço a fim de ver através da cortina de tiras.
- Ih, truta... Pôpai cachimbou, e tá quebrando tudo.
- Porra, nóia... Os bagulhos da minha madrasta.
- Ele agora tá no ponto de fazê malvadeza.
Soaram palmas do lado de fora na viela. Sobressaltados ergueram-se empunhando as armas... Téku Bily engoliu o riso, seu sangue se agitava nas veias. Acurando a vista averiguou pela fresta da tábua. Era a irmã transtornada.
- Qualé, mina! Vaza daqui. - Téku armara um safanão, mas foi impedido por Pretudóla.
- Mêu, tão na tua captura... A paisano.
Resolveram então sair na encolha pra dar um rolê pela quebrada. Sentaram numa birosca e pediram uma gelada.
- Pega lá a lôra, Pôpai.
De relance Téku Bily espiava desconfiado o movimento. Um cão fiel vagueia adiante. Noutro boteco jogavam baralho, defronte uma carroça seu pangaré preso num pontalete. Raro e denso silêncio envolvia os barracos... De repente duas motos se aproximaram pela entrada da favela. O garupa saltou engatilhando o trabuco. Pôpai que vinha com os copos mais a bebida quis retroceder, num instante o baque do corpo mole na lama, não que fosse da chuva mas dalgum esgoto vazante. O motoqueiro avançou atropelando o cadáver, já tendo à mira Pretudóla que escapulia, caiu dali uns metros.
Téku escondeu-se e sacou da pistola presa ao lombo. Assustado o motociclista todo vinil voltou-se bruscamente num cavalo-de-pau. Todas as considerações eram respondidas pelos estalidos dos revólveres. Alvejado, um dos motoqueiros com a parada brusca vôou sobre o guidão. O seguinte aproveitando a distração fuzilou Téku, este fez uma careta, retorceu a boca como se quisesse cuspir as balas caindo de cara numa poça... Daí evadiram-se roncando as motos, a atirar para o alto. Pondo fim aquele bang-bang urbano ao sol do meio-dia, em ITAPEMA CITY.
         

terça-feira, 2 de novembro de 2021

Além do Sociedade @lternativa ITAPEMA




A plêiade de frequentadores do '&.@' era das mais inusitadas. Somente um homem de espírito universal feito Bartô, capaz de aturar semelhante freguesia.
Cliente assíduo de todas as tardes, Altério figurava no rol dos polêmicos. Do nada discorria seu saber enciclopédico misturado a uma filosofia canhestra. Negava o carma...
- Que culpa tenho das bobagens da minha encarnação de Luís XIV? Dos erros cometidos quando "eu" era Messalina? - Ia além das medidas. - Se fui o sujeito quem bateu os pregos na cruz... - O escárnio das suas teses comprobatórias, em geral vinha acompanhado de gogo ruidoso... Asfixiante.
- E as coisas do outro mundo tem explicação?
- Nem ninguém nunca voltou de lá, Bartô! Vida após a morte, já por si é um paradoxo metafísico.
- Ouviste falar em experiência "quase morte"?... É como um túnel de luz, mas a pessoa volta.
- Oh, boa alma... Cridendo vedere! No meu bom latim: Cada um vê o que quer!
- A cana ardente está lhe cozinhando o cérebro.
- Certas coisas só acredito vendo... Mas não vou pagar pra ver! - E pediu licença disposto a sentir o frescor vespertino de Itapema.
Na calçada coincidentemente avistou um velho conhecido, motorista do Serviço Funerário Municipal. Vulgo chofer de defunto. Seu rabecão estacionado adiante. Altério alardeou de cá aquela piada mórbida:
- Aonde vai o presunto?... Passear? - Rindo sem rir da dor alheia sacudia a compleição fantasmagórica.
Logo ali ao lado, nos umbrais da igreja evangélica apontava o féretro soturno. Perplexos os condolentes detiveram-se estacando os passos.
-Ih...! Foi mal, irmãos. Minhas condolências, que o Altíssimo o preserve num bom lugar. - E murmurou entre dentes dando às costas. - A mim resta senão outra cachaça em memória... Amém!

sábado, 2 de outubro de 2021

UM FORRÓ EM ITAPEMA

A TRADICIONAL MANIFESTAÇÃO CULTURAL NORDESTINA PRESENTE EM ITAPEMA/SP.

Naquele domingo no Forró "Só Alegria", o clima esquentou atiçado pelo trio nordestino. Ronca alto o fole, marca firme a zabumba, floreia o triângulo e chama pro arrasta-pé. Homem perto de mulher, pólvora perto de tição é a estrofe do cantor. Aqui e ali balança a saia enfiada nas pernas das calças, chia a chinela riscando o salão. Entre as mesas espalha a zuada do conversê.
Juventina remelexe só fazendo prosa da fogosa decadência, doida pra entrar no forró. Balançava que a vergonha caía. É viúva fubeca, gosta duma cachorrada. Estava toda sibite, a cara pintada parecia uma jaguatirica. Fica por ali rosetando.
- Vai ficá esquentano tamborete? - Achegou-se ela a beliscar o cabra.
Zézin "Bico Doce", afamado mulherengo não enjeitava parada. Porém, se fez de rogado.
- Oxente, agora deu!!... Adispois, sinhá-égua! - Ao que Juventina emitiu um muxoxo.
De primeira queria o mussiço, nada de couro curtido... Perfumado dentro da sua milhó roupa, ele butuca o mulherio.
- Mulé é como sapato... - Costuma goguejar no balcão. - Só presta bonito e novo. Só levo ali na sola... Comigo é assim! - Bebericou a "Pitú" ardente... Agora era o xote a ritmar os corações juntinhos.
Nisso arreparou numa morena jeitosa da cor de açucena. Não pode resistir, ficou de juízo mole. Tinha mais lábia que Patativa.
- Duas coisas apreceio neste mundo, rabo de saia e farinha d'água. Se fartá farinha eu nem ligo.
A moça achou aquilo dum inxirimento!
- Eu assuntei o que ocê falô de mulé. - Não lhe dava confiança, mas conhecia de vista Zézin.
- Apois, cada pé tem sua alpercata.
- Inté mesmo um borra-botas e pé-rapado feito tu, visse! - Respostou e saiu faceira.
- Eita... Abufelou-se!!
Os pariceiros danaram mangar dele. Todo "bico doce" tem seu dia de amargar.

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

MEMÓRIAS DE UM COVEIRO ITAPEMENSE

VIVER REQUER SABEDORIA NOS ENSINA O COVEIRO.

Que ninguém duvide dos mistérios entre os céus e a terra vã. Fenômenos sobrenaturais deste estranho mundo. Eu mesmo que lidei com o enigma da morte, desde os tempos de coveiro no Cemitério Distrital itapemense, pouco posso avaliar. Segredo tão oculto só revelado no fatídico instante. A que desígnios e divindades cegamente serve? Este arcano da sentença temível.
Mostrar-se a mim sua ostensiva presença tendo facetas variadas. Um lacaio de quem pudesse dispor para atendê-la, como que destinado à funesta incumbência.

Quando adolescente meus pais encarregavam-me de despachar os animais domésticos da família, os quais morriam de causa incompreendida. Fosse um gato ou cachorro. Por vezes após estertorar horas no oitão, inconvenientes moscas a perseguir. Era deste modo a sorte dos bichos de estimação antigamente. Uns tantos que ainda trago na fugidia lembrança. A enroscar-se em minhas pernas, seus latidos pelo quintal. Então inertes, o corpo esvaído, sem anima, um olhar opaco. Improvisava caixote como urna funerária, cobria com os trapos em que o bicho dormia, ou fazia deles uma mortalha na qual o envolvia. Colocava no bagageiro da bicicleta, a enxada presa também e ia enterrá-los pras bandas da restinga do Distrito. Naquele pensar de que retornassem à mãe natureza. À beira da mata umas embaúbas de galhos em candelabros, espinhentos ticuns, jerivás espalmados, donde diziam espreitar a entidade caipora, o travesso curupira. Ao cavar o buraco surgiam sanguinolentas minhocas, caramujos minúsculos, negros besouros, formigas que se fartariam depois de tudo coberto. Não tinha oração, nem lágrimas, apenas a despedida muda, coincidindo com o pôr-de-sol. Entristecia-me, porém logo me conformava, se podia substituí-los... Preferia assim a largá-los num terreno baldio, senão no monturo de lixo das esquinas, decompondo-se à mercê dos urubus famintos que lhes arrancavam os olhos das órbitas, a língua, destripava-los pelo ânus as vísceras pútridas. O bando de casaca funérea a disputar às bicadas o couro fétido, de resto o despojo do esqueleto descarnado. Tendo o olhar enojado dos transeuntes. Mas é óbvio, eu estar falando de seres nesse estágio de evolução do espírito...

Pois foi na minha infância seu vislumbre deveras impressionante. Aconteceu primeiro num chalé sobre altos pilares, cuja tinta azul pálida do tapamento de forrão craquelava. Endereço qual não consigo mais precisar ou quem seja, feito fantasmas na memória. Lá dentro o velório de uma criança, alguns poucos anos de vida. Fora carregado por uma parente conhecida da mãe enlutada. Subimos uns lances de degraus estreitos. No meio da sala em cima da mesa, o caixãozinho branco. Quatro velas nuns pires, junto à cabeça e os pés, queimavam chorosas sua cera. De feição angelical tinha o rostinho imerso em delicadas flores brancas, amarelas, já esmaecidas. Uma princesinha adormecida eternamente. Algumas crianças, a meu exemplo amedrontadas, outras silentes rodeavam a menininha morta. Logo acima, a sagrada família pendia no prego. Num canto irmãs e amigas consolavam a mãe pela triste perda. Os meus olhos infantis viam a presença invisível da morte naquele pequeno corpo. Eu podia sentir o frio percorrer-me. Em seu estado de estupefação a mulher dirigia-se aos pequenos ali. Acariciava-lhes a face, braços, afim de certificar-se estarem vivos. Fez o mesmo comigo, as mãos gélidas: "Estão vendo a minha bonequinha?... É tão linda!" Daí ajeitava o vestidinho alvo, os dedos esquálidos a afagar as mechas do cabelo... Chegada a hora do adeus e seguir para o cemitério, isso inquietara a pobre mãe. Enlaçou o caixão a demorar-se em carinhos. Seu choro era de uma dor profunda, soluçante, de muitos ais. Não queria deixá-la ir. Com alguma relutância aceitou. Antes teima trocar o vestido de batismo que a menina usava por um outro, ela guardaria aquele de recordação. Insistiu. Alguém advertiu da rigidez do corpinho dela. Havia o adiantado do relógio... Cederam. Todos saímos. Auxiliada por duas senhoras de cabelos grisalhos, a mãe trocou a veste funeral da menininha morta. Depois retornamos, então fechou-se a tampa do caixão. Eu entendi que morrer seria deixar de brincar, não ter mais os pais por perto, um vazio assustador...

Ainda pirralho atrevido fui acompanhar o velório de um idoso solitário falecido na vizinhança. Via ele passar defronte ao portão de ripas rumo à padaria. Seu chapéu de feltro marrom, tira de cetim, grandes óculos-escuros e sapatos arrastando a velhice. Assíduo frequentador do Pronto-Socorro da Av. São João. Certo dia a veraneio branca da ambulância não voltou. Veio o soturno carro da agência funerária, trouxe no porta-malas a esquife, colocaram-na apoiada num suporte de ferro. Com a mortiça luz ambiente traindo a vista parecia levitar. O caixão estampado de ornamentos fúnebres, arabescos violetas. À cabeceira  do morto, um círio de metal burilado fulgurava ante a chama da vela naquele recinto sombrio. Duas outras tremeluziam em longos castiçais aos seus pés. Encostada mais atrás a tampa do ataúde. Humilde coroa mortuária de flores homenageava o defunto. Trajava camisa azul-turquesa de mangas compridas, calça marinho e descalço. Corpo rijo, mãos entrelaçadas no peito segurava um crucifixo. O véu de tule a cobrir o rosto lívido permitia entrever a calva sardenta, narigudo, os chumaços de algodão enfiados em suas narinas. Por baixo daquela pele rugosa a caveira. Crisântemos, cravos cobriam o velho. Os odores das flores, da cera derretida, o que exalava do cadáver, nauseavam-me. Pessoas circunspectas vestindo luto cochichavam assombradas, vagavam entorno. A vizinha de cerca, coberta dum lenço preto, fazia questão de prantear o falecido. Enaltecer-lhe as qualidades em vida, enquanto brada um talo de rosa branca. Exclamava quem poderia adivinhar!... Diante dele as dúvidas cresciam comigo. Estaria sua alma invisível assistindo a todos nós? Onde era o mundo dos mortos? Todo meu temor infantil consistia em que de repente o morto abrisse os olhos vazados, despertasse e levantaria dali. Aos modos de um Lázaro macabro, que eu lera na Bíblia de meu pai... O vulto cadavérico traiçoeiramente afligia-me durante terríveis pesadelos, saído do breu sepulcral trajando a roupa do enterro, o chapéu numa cabeça de caveira. Sempre o ar impregnado do cheiro de flores, mais velas ardentes. Eu sem conseguir acordar daquilo, sequer gritar, desesperava-me!...
Noutros idos, os velórios no saudoso Itapema aconteciam em casa, tradição seguida pelas famílias do Distrito à época. Tomavam-se alguns cuidados rituais. Os pés do falecido, da finada que fosse, deveriam ficar voltados para a porta da rua. A fim de que não regressasse, sem ficar assombrando a família. Seu derradeiro caminho seria a sepultura. O cortejo era feito a pé pelas ruas principais do Bairro, passos curtos, em direção ao Cemitério Distrital. Agarrados às alças do caixão pesado, amigos íntimos, parentes cabisbaixos, admiradores. Ou conduzido dentro do rabecão em marcha lenta, enfeitado de fúnebres arranjos florais, fitas roxas, palavras consoladoras. Se católico o padre encomendava a alma. O séquito pesaroso, contrito, familiares estupefatos, a deixarem cair as lágrimas no trajeto. Seja pelo morto e por si próprios. Durante a caminhada fúnebre, muitos ficavam curiosos em saber quem havia morrido, perguntando aos enlutados de quem se tratava. Daí benziam-se respeitosamente, acaso proferiam um salmo conhecido. Por uns instantes o tímido trânsito de carros, tanto mais de carroças e gente parava, ninguém atrevia-se a ultrapassar o féretro. Pois conforme a crença popular seria uma afronta ao defunto. Podendo trazer mau presságio e infortúnios, a vida andar para trás.
Havia outro antigo costume bastante incomum, famílias que mandavam fotografar o funeral. Assim ter a lembrança do ente querido naquele último momento. Uma velha tia, viúva, providenciara para meu tio as exéquias, quando do seu falecimento. E mostrava a nós parentes que íamos visitá-la, o álbum como relíquia mórbida. O amarelado do tempo dava a essas fotografias aspecto fantasmagórico. Em primeiro plano o morto no ataúde, adornado de tule branco plissado, flores fúnebres. A máscara mortuária pétrea, ventas entupidas de algodão, mãos postas a tocar o coração imóvel. A volta o espanto, a perplexidade das expressões dos vivos. Sob a luz do flash os presentes ali tinham a semelhança de espectros. Um cruzeiro metálico, São Sebastião flechado num oratório, o luto das vestes, o branco e preto floral, uma grande bíblia aberta, compunham o cenário da fantasmagoria. A impressão é que captavam a visão do espírito do falecido sobre si mesmo, através da câmera fotográfica. Em nossas mentes o choro e as lamentações...
Contudo, não seriam estes propriamente os ossos do ofício. Fora abrir covas alheias, os enterramentos, as exumações. Ou espantar os moleques atrapalhando o descanso eterno dos mortos, correndo sobre os columbários atrás de pipas. Mas, sobretudo decifrar seu enigma universal. Que assola o Cosmos e a mísera Humanidade, os seres de Gaia. Cada povo tem uma maneira particular de encarar a morte... Antes que se tivesse um Campo Santo em solo itapemense (na 6ª década, do século XX), pessoas de famílias importantes do Distrito Municipal eram sepultadas nos cemitérios da vizinha cidade santista. Os caixões também somente vendidos lá, quando necessitava-se de algum, este era encomendado e ao chegar ficava exposto encostado na Estação das Barcas de Itapema, até a família do finado ir buscar. O Distrito estuarino de poucas almas viventes de outrora, breve tomava ciência do passamento da pessoa. A notícia do óbito corria e todos ficavam sabendo. Não se morria anônimo. Solidária consternação abatia-se entre os habitantes, sendo gente conhecida. Certas ocasiões o sino da igreja matriz dobrava em honra à pessoa morta. Sua alma protegida, que a víbora do mal estava dominada sob os pés de Nossa Senhora das Graças. Fazendo assim o ilhéu itapemense a definitiva "Travessia do Aqueronte", o Rio das Almas, levado pelo barqueiro Careonte.
Zodíacos astros circundantes do infinito conspiraram. Eis-me a superfície do planeta a cavar. Serviçal funerário. Testemunha das aflições dos moribundos viventes, bem como das causas mortis daqueles que, em seus dispensáveis casulos, transpunham os portões guardados por arcanjos do umbral de entrada. Frente as funestas ocorrências indagar incompreensíveis propósitos. Os dolorosos sepultamentos de crianças prodígios. Meninos talentosos, jovens beldades, subitamente interrompida precoces vidas partindo tão cedo. Fatalidades, descuidos com doenças, eletrocutadas sozinhas em casa, enforcados suicidas, imprudentes afogamentos no estuário, nas praias da Ilha. Tendo o mundo inteiro pela frente. A provocar verdadeira comoção dos populares. Nessas horas é difícil aceitar. Tanto mais vê-los plácidos dentro do caixão, num sono profundo do qual fosse possível despertar. Mesmo com todas evidências, o rigor mortis, parentes imaginam um sopro de vida. Notam enganosamente perceber uma débil respiração. Querem socorrê-los, diante daquilo que reputam um milagre dos dias do Nazareno. Intentam crendices. Passar a vela acesa próximo ao nariz do morto, naquela expectativa que mova-se a chama. Senão, colocar um espelho defronte a máscara mortuária esperando o embaciamento da superfície refletida, com o suposto respiro da pessoa morta. Decepcionante constatação. Quando muito gases exauridos da putrefação interna pelo nariz e boca... Ser ou não existir? Esta posta a questão.
Determinados óbitos são sem dúvida traumáticos. Dado as características horripilantes. Vítimas de incidentes violentos, mortes aterrorizantes. Desta forma exposta a fragilidade da carne humana, tendo aviltados seus corpos. Sejam mutilados em colisões de veículos, esmagados acidentais, chacinados crivados de tiros, carbonizados irreconhecíveis ou afogados carcomidos por caranguejos após boiarem nos mangues lamacentos. Nesses casos se requer esquife lacrada de modo manter a imagem íntegra da pessoa, a evitar o intenso mau cheiro. Apenas um visor transparente a mostrar a face claustrofóbica do cadáver. Todos familiares lamentosos debruçados sobre o esplendor do Cristo crucificado na tampa. Via neles, a face mais sombria da Senhora das Almas. Invadiam grotescos minhas madrugadas de insônia, povoando meus recorrentes pensamentos mórbidos...
Diz a filosofia popular, que numa coisa ricos e pobres igualam-se, têm os mesmíssimos padecimentos. Ou seja, na morte inevitável. Para um, o acerto de contas. Tendo o outro, descanso das agruras do destino. Entretanto, antes de descer o caixão ao frio sepulcro e saciar a gula dos vermes necrófilos, dispõe o vil metal pagar honras melhores. Ataúde em madeira de lei, ornado de símbolos sacros, cetim revestindo o repouso. Pomposas coroas de flores desabrochadas da fúnebre primavera. Velório cerimonial num templo, ornamentado rabecão pelas avenidas. Nome citado nos obituários dos jornais. Quem sabe alcance a posteridade. Recorrem os infaustos à compaixão monetária dos parentes, pois as encomendas do corpo já não custam somente 2 moedas...
Aí mal esfriou o cadáver da gente de bens, a usura aflora tamanha mesquinhez no seio familiar. Toda parentela se considera merecedora dalgum quinhão. Inclusive parasitas agregados por parentesco, filhos ingratos traidores da confiança, netos desalmados esquecidos dos carinhos. Cônjuges infiéis vestem luto. Arrependidos bajulam o Altíssimo com interesseiras orações a derramar lágrimas de crocodilo. A aura escura do egoísmo os domina. Ferem-se mutuamente quanto cospem desprezíveis razões, indo às barras dos fóruns. Irmãos se voltam contra si. Querem embargar genros e noras malquistos. Filhos adotivos excluídos do inventário. Em nada respeitam a última vontade do ente falecido, julgando dar proveito rentoso a herança. Possuídos pela maldita ganância lançam mão de tramoias advocatícias. Capazes de cometer assassinatos. Dizeres bíblicos das sagradas escrituras advertem, não junte tesouros na terra, onde as traças e a ferrugem tudo corroem, e onde os herdeiros minam e roubam. Nem sempre onde estiver o seu tesouro, também estará o seu coração. Herança é o que os mortos deixam para os vivos se matarem...
Céticos tentarão explicar. Fatos surpreendentes sucederam nas tantas quadras do Cemitério Distrital da Consolação. Coisas do além a olhos vistos. Manifestações telúricas espantosas. Não há lógica possível na dimensão paranormal... O amigo fiel chegou seguindo o cortejo fúnebre, desorientado perambulava a assistir o pesar dos condolentes. Não enxotaram-no naquele último adeus dentro da Capela Mortuária. O cão viera as exéquias do enterro de seu dono. Após selar o túmulo, permaneceu dias à beira do jazigo. Ao transcorrer do dia mantinha silêncio. Porém, obscuras noites ouvia-se os latidos, ganidos eufóricos, até uivos do cachorro. Como se este pressentisse a presença do dono morto. O vigia nunca mencionou ter visto algum fantasma. Da vez que encorajou-se aproximar sorrateiro, viu o animal latindo ao léu para algo etéreo acima da sepultura, doido a girar perseguia o próprio rabo. Um calafrio repentino percorreu-lhe a espinha vertebral, seguido duma sensação paralisante. As sombras noturnas cobrindo as estátuas funéreas atormentavam o homem e retrocedeu. Pelo alvorecer ia conferir. O cão manso a mirar o retrato do dono falecido atarraxado na lápide...
Imaginem quanto uma doença pode ser aterrorizante. De repente a pessoa sofre estranha morte súbita. Sem respiração, batimentos cardíacos, nem atividade cerebral aparente. Acometida do mal que os médicos chamam estado de catalepsia. Um torpor mórbido profundo. O óbito é atestado. Realiza-se o funeral. Ocorre a situação mais apavorante. Sendo a pessoa enterrada viva. Recobrando os sentidos na escuridão da esquife, o desespero de acordar debaixo da terra. Gritar e não ser ouvido, as mãos dilaceradas por ter arranhado a tampa do caixão. Arder os pulmões em sufocamento. Finalmente morrer de asfixia. Porventura, mediante a hipótese de padecer desta macabra doença procede-se a exumação. Os indícios encontrados são reveladores: o cadáver revirado, vestes desgrenhadas, fixa na face aquela perturbadora expressão de horror...
Dentre as tarefas de um coveiro, penosa era a exumação dos restos mortais para desocupar a cova. Retirada a pedra tumular, após emanação dos gases fétidos, mais miasmas asquerosos e a luz do sol adentrasse a sepultura, o vislumbre da tola vaidade, a soberba das pessoas reduzida à podridão. Constatar a pequenez humana ante a voracidade dos micróbios. Sobras do caixão apodrecido, os  fechos e alças enferrujados, farrapos de tecidos, carregados num carrinho de mão. Não muito resta da decomposição do corpo humano. Uma gosma escura repugnante, tufos de cabelos, dentes soltos, enfim. Nem todos os ossos resistem, o crânio descarnado, úmeros, rádios, algumas costelas, a pelve óssea, fêmures, tíbias, recolhidos em um saco, depois empilhados no ossário do cemitério.
Tendemos a olhar a Malévola Visitante sendo injusta. Contudo, aos desafetos cumpre-se vingadora, vontade punitiva, conforme nosso falho julgamento de moralidades. Quando de fato, puro azar eletivo.

Nada sabemos deste futuroso encontro. Todos nós carregamos o estigma. Virá a Dama vestida de cetim lilás? Talvez, o abraço do espectro que lhe envolve de escuridão. Ou a ceifadora esquelética macabra... Quem poderá adivinhar? Rá! Rá! Rá!
Perdoem-me se causo a vocês temores com estas crônicas funestas. Porquanto gira a Roda da Fortuna, são 7 dias da semana, 7 os pecados capitais, como 7 são os palmos abaixo do chão... Rá! Rá! Rá!

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Bairro PRAINHA - às margens de ITAPEMA

A MARGEM ESTUARINA DO BAIRRO PRAINHA - ITAPEMA/SP.

Muito antigamente devido a conformação estuarina da margem itapemense, com ocorrência de sedimentação intermediária arenosa, a área do Bairro Prainha consistia da Restinga remanescente, trechos de mangue, bancos de areia, perlongando o canal do estuário. Faixa estreita sempre invadida pela maré-alta, composta ora dum substrato argiloso escuro adjacente ao mangue e dessa movimentação marinha da margem a marulhar, forma pequenas enseadas arenosas. Areia grossa, mais clara, contendo muitas casquinhas fragmentadas de crustáceos.
Na restinga viviam saguis, teiús, saruês (marsupial brasileiro), juritis, tiês, tizius, dentre outras espécies recorrentes. Pelo manguezal durante as trovoadas os caranguejos (uçás) apareciam desentocados da lama. Os moradores apanhavam também marisco ("unha-de-velho") numa formação de pedras à beira d'água nas imediações da "Torre Grande". Quando as águas do estuário (guarapissumã, para os indígenas) ainda eram limpas pescava-se siris, camarões com tarrafa, robalo, garoupa. Nadava-se acompanhado dos botos tucuxis.
TARDE REMANSOSA ÀS MARGENS DO BAIRRO PRAINHA - ITAPEMA/SP.

Desde 1910, tem ali instalada a Subestação Elétrica "Torre Grande", próximo a Torre metálica de Alta Tensão (margem Bairro Prainha), com 80 metros acima do nível d'água, atingindo a fiação, vinda da Usina de Itatinga (CDS) por Itapema/SP, o outro lado do Porto de Santos. Aliás, esta monumental Torre emblemática bem que merecia uma iluminação decorativa a enfeitar a paisagem itapemense.
Neste terreno a Subestação dispõe de um conjunto de casas (chalés em madeira) para os funcionários da Codesp e demais finalidades. O local abriga também um Posto da Guarda Portuária, atento à margem esquerda.
TORRE METÁLICA DE ALTA-TENSÃO "TORRE GRANDE" - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP] 2011.
SUBESTAÇÃO ELÉTRICA "TORRE GRANDE" - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP] 2011.
A "TORRE GRANDE" NA MARGEM DO BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].
CONJUNTO DE CHALÉS EM MADEIRA DA SUBESTAÇÃO ELÉTRICA "TORRE GRANDE" - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP] 2011.

Como dá a entender anotado do Censo da cidade, promovido pela Prefeitura de Santos, em 1913, definindo Itapema Zona Rural (3º Distrito), a região estuarina do Bairro Prainha era chamada "Pary". Designação de origem Tupi: nome dado à armadilha feita pelos indígenas, com varas amaradas de cipó, formando tapume (cerca móvel), utilizada em pesca. Ou ainda, canal para apanhar peixes.
Paralela à "Prainha" passava a antiga Estrada dos Carroceiros. Vinha da Estação das Barcas, seguia a "Torre Grande", entre a mata, o mangue e gamboas a caminho do Sítio Conceiçãozinha. Havendo marés cheias tinha-se dificuldades para trafalgar. Utilizada por sitiantes das proximidades no transporte em carroças de suas mercadorias: porcos, galinhas, marrecos, patos, mandioca, abóbora, inhame, batata-doce, chuchu, banana, goiaba, laranja, vasos de xaxim, coisas a serem vendidas na Feirinha do "Pontão das barcas".
VISTA DO ESTUÁRIO A PARTIR DAS MARGENS DA "PRAINHA" - ITAPEMA/SP.
   
Conforme populares o Bairro Prainha começou com 8 famílias, por volta dos anos de 1940. No final da Rua Santa Terezinha, junto à Subestação Elétrica e da Rua Quarta, surgiram as primeiras habitações. Naturais da terra querendo morada, migrantes do nordeste brasileiro, gente do litoral paulista. A princípio alguns subsistiam da pescaria, apanha de caranguejos, coleta da Restinga (frutos, coquinhos, palmito, xaxim, bambu), consumindo mais a venda do pescado. Outros, empregados como mão-de-obra nas atividades portuárias, construção civil, carpintaria naval (estaleiros itapemenses), lavadeiras, empregadas domésticas.
Até os anos de 1950 possuía poucas casas, um recanto aprazível para se morar embora não regulamentado. Certa característica é que estes primeiros ocupantes, tendo os filhos formado famílias amealharam por extensão um lote. Cuja ocupação espontânea pari passu estabeleceria assim seus limites: Desde a Rua Quarta, seguindo pela Rua Beira-Mar (depois da Subestação) ainda à direita Rua Tiradentes e adiante limítrofe ao Bairro Pae Cará, até as terras do Sítio Conceiçãozinha (Terminal de Contêineres). Da outra banda estendendo-se ao longo da margem itapemense no estuário.
DETALHE DE FOTOGRAFIA AÉREA ONDE PODE-SE DISTINGUIR A ÁREA DO BAIRRO PRAINHA - ITAPEMA/SP [DÉCADA DE 1960].

Uma figura marcante do Bairro Prainha (nos idos de 1960) era o Antonio Siri, residente num casébre da Rua Quarta, bem perto da maré. À época o morador itapemense, numa daquelas eleições, como "Voto de Protesto" lançou a candidatura do Ganso do Siri. Esse tal Antonio, era o dono do conhecido Ganso, um antigo pescador das margens estuarinas de Itapema/SP, fazedor de boas tarrafas. A ave anatídea seguia o dito cujo Siri feito um guarda-costas, bicho de estimação. Atendia pelo carinhoso chamamento de "Ditinho". Nas redondezas onde morava o Ganso vivia dando carreira em meio mundo pelas ruas. Quem passasse na Rua Quarta, "Ditinho" corria atrás e bicava-lhes as pernas. Mas, o Ganso "Ditinho" gostava mesmo era dar bicadas naqueles que mexiam com seu dono Siri. Quando o pescador voltava da Estação das Barcas, depois de vender as dúzias de siris que apanhara nas margens da "Prainha", e perambular trôpego pelo Distrito. Antes de chegar em casa, Antonio Siri costumava parar nos bares do Itapema, querendo tomar umas cachaças. O pescador arriava na porta do bar de tanto virar o copo. E ninguém tocava o homem dali, que o Ganso brabo não deixava.

[Imagem ao lado - o Ganso Vereador, morador da "Prainha".] 

Assim tornou-se muito falado e seu prestígio obteve as honras do reconhecimento popular. O Ganso "Ditinho" era companheiro fiel, combativo, o "calcanhar de Aquiles" de muita gente, não tinha medo de fazer alarde... A campanha eleitoral do Ganso Vereador ganhou as ruas do Distrito itapemense. Foram distribuídos panfletos. Propaganda na Imprensa local e muros pintados apareceram. O panfleto servia como cédula eleitoral podendo ser colocado oculto na urna.
A verdade é que no dia da Eleição Municipal, o Ganso do Siri foi bastante votado deixando boquiabertos os fiscais da Zona Eleitoral 310. A notícia se espalhou na boca do povo. Disseram ter sido eleito para o cargo e assumiria o mandato na Câmara Municipal... Aconteceu que misteriosamente assassinaram o Ganso do Siri. Descobriram-no já morto, aparentemente envenenado. Sem pescoço quebrado ou ferimento à bala de garruncha. Siri, o dono não entendia aquela pura maldade e derramou lágrimas embriagadas. Os restos mortais do Ganso Vereador então sepultados em solo da "Prainha". Contudo, correligionários (antes destrinchada a ave) mandaram empalhar o Ganso "Ditinho", que ficou exposto um tempo no Bar do Anastácio. Angariou o Ganso do Siri espaço simbólico no imaginário da população. Eleito candidato honorário do povo.
ANTIGOS MORADORES DA RUA BEIRA-MAR - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].
A FAMÍLIA APOLINÁRIO RESIDENTE À RUA BEIRA-MAR - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].

Era uma Sexta-feira à tarde, do dia 19 de Fevereiro de 1965, quando a gente assustada da "Prainha", mais alguns pescadores ali à beira, ouviram um barulhão de metal amassando. Então notaram aquele acidente espetacular, um jato da Força Aérea Brasileira (FAB), do tipo 'Gloster Meteor', num vôo desgovernado prestes a cair, daí explodiu antes de tocar as águas do estuário (às 15:30 h.), cuja explosão foi ouvida nas imediações do Porto. Este avião integrava uma esquadrilha em formação, mas após manobras de acrobacias voando à baixa altura chocou com a rede de Alta-Tensão (44 mil volts), que cruza o canal portuário (à 80 metros) no topo da "Torre Grande", às margens da "Prainha". No impacto com os fios viu-se intensas fagulhas elétricas e a aeronave perdeu parte da fuselagem, os cabos arrebentaram, dali a pouco um estrondo, nisso o avião desintegrou-se. Seu piloto teve morte instantânea. Aquele momento da explosão do jato da FAB navegavam pelo estuário algumas embarcações carregadas de bananas, que foram atingidas por destroços. Um de seus tripulantes sofreu ferimentos, sendo coincidentemente morador do Distrito. A Base Aérea (em Itapema/SP), que servia como apoio aos exercícios da Esquadrilha, acorreu ao socorro mobilizando oficiais e soldados. O desastre aéreo suscitou a presença de curiosos ao longo da "Prainha".
ACIDENTE AÉREO COM JATO 'GLOSTER METEOR' AO ATINGIR OS CABOS ELÉTRICOS DA "TORRE GRANDE" - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].
RESGATE DO JATO 'GLOSTER METEOR' NAS ÁGUAS DO ESTUÁRIO, QUANDO DA COLISÃO COM OS CABOS DE ALTA-TENSÃO DA "TORRE GRANDE" EM 1965 - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].
      
Nos verões de outrora muitos moradores banhavam-se ali, a garotada com bóias improvisadas usando câmeras de pneus de caminhão. Aquele típico banho de maré pra se refrescar aos fins de semana. Nesse ambiente rústico estuarino,  porém prazeroso. Tanto mais diferente dentre as experiências marinhas. Vários garotos, mais as meninas aprenderam a nadar nessas águas remansosas da "Prainha". Esse seu marulhar fica mais intenso (a formar marolas) quando da passagem de embarcações pelo Canal do Porto (navios, rebocadores, lanchas).
GAROTOS SURFAM NAS MAROLAS DA "PRAINHA" - ITAPEMA SP.
BANHO DE MARÉ PRA SE REFRESCAR - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].

A partir da década de 1970, sofre maior ocupação ao alheamento da Administração Pública, constituída por residentes de modestas condições sócio-econômicas. A precariedade do assentamento naquelas terras, sem arruamento adequado, drenagem das chuvas, saneamento básico, iluminação pública, energia elétrica e água improvisadas, o desarranjo dos casébres de tábuas, tantos deles insalubres, entreveros decorrentes do convívio em comunidade, criminalidade, somadas as dificuldades cotidianas de sobrevivência, fizeram com que o Bairro Prainha se tornasse um preocupante foco de tensão social.
O aspecto atravancado do Bairro não privilegiou os acessos, trânsito de pessoas e veículos. Sem propriamente arruamento ordenado, mas sim ruelas, vielas, mais uns tantos becos. Porém anotamos as exceções enquanto logradouro: Rua Nova, Rua Tiradentes, Travessa Tiradentes, Rua da Paz, Beco da Paz, Rua das Figueiras, Rua Beira-Mar, Rua Particular Jurema, Rua Quarta, Rua Projetada 100, Rua Santa Terezinha (segmento), Rua Mato Grosso (segmento), Rua Particular Mato Grosso, Rua Guilherme Guinle (segmento). Constam da ocupação adjacente: Rua Liberdade-Itapema, Rua da Liberdade, Rua Botafogo, Rua do Beco, Rua H2 e Rua do Estradão.  
Por esses tempos teve construído embaixo da "Torre Grande" (final da Rua Mato Grosso), um píer de embarque destinado aos trabalhadores da Companhia Docas (CDS) e Estivadores. Acesso via lancha para o outro lado do Porto. Este píer foi também uma plataforma concorrida pelos travessos do Distrito itapemense em dias de calor. Atrevendo-se em saltos mirabolantes a mergulhar nas águas estuarinas da "Prainha". Os jovens competiam entre si, quem conseguia atravessar a nado o canal do Porto (220 metros) e chegar primeiro ao tocar as docas.
ANTIGO PÍER DE ATRACAÇÃO PARA OS TRABALHADORES DA COMPANHIA DOCAS E ESTIVADORES, EMBAIXO DA "TORRE GRANDE" - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP] 2010.

8 de Janeiro de 1974, o navio a motor 'AIS GIORGIUS', de bandeira grega,  encontrava-se atracado no armazém XXXII, do Porto santista, subitamente ocorreu um sinistro, deflagrado por incidente com fogo numa composição ferroviária ao lado do cais que provocou o incêndio da embarcação cargueira. Propagou-se rápido, eram 22:30 h., as chamas atingiam 50 metros de altura, o povo da "Prainha" correu pra ver, outros itapemenses atraídos pela notícia de boca em boca, sobretudo o clarão e a pirotecnia naquela noite. Catraieiros atuaram como salva-vidas durante o incêndio sob o risco da fumaça tóxica, detonações pela combustão. Aqueles que faziam o plantão noturno acudiram resgatando tripulantes, estivadores e conferentes que se atiravam às águas do estuário para fugir do fogo. Ainda assim, matou um tripulante da Turma de Salvamento. Para evitar um desastre maior, pois as chamas ameaçavam demais navios e instalações portuárias, as Autoridades resolveram desatracá-lo para a margem esquerda (Itapema/SP) utilizando rebocadores, em meio a explosões e gigantescas labaredas que se sucediam, vindo o 'AIS GIORGIUS' a encalhar nas proximidades da "Prainha" defronte a "Torre Grande". Queimou durante 70 horas seguidas, ficando semi-submerso e de sua estrutura apenas a proa estava intacta. Por duas décadas figurou na paisagem do Bairro Prainha, também prestando-se as estripulias de moleques audazes em altos mergulhos. Até mesmo Herbert Vianna (Paralamas do Sucesso) nadou ali, morador da Base Aérea no Distrito itapemense, noutros tempos.
O NAVIO 'AIS GIORGIUS' REBOCADO PARA AS MARGENS DO BAIRRO PRAINHA (NOTA-SE OS CASÉBRES NAS PROXIMIDADES) EM ITAPEMA [1974] - LITORAL PAULISTA.

Em meados dessa década, a ampliação do Porto na margem itapemense implantando-se Terminais Marítimos de exportação e importação, o advento do Ramal Ferroviário de Carga Conceiçãozinha-Perequê ao cruzar o incipiente Bairro Prainha deixaria seu rastro. Devido a desatenção da Autoridade Portuária permitiu a invasão desordenada de barracos na faixa de marinha do estuário. Consequentemente, terrenos à beira da linha férrea, trechos de Restinga degradaram-se dando espaço à moradias irregulares junto aos trilhos da Ferrovia de Carga, espremidas ao lado de Terminais Marítimos em Itapema/SP.
OS TRILHOS DA FERROVIA DE CARGA RUMO AO BAIRRO PRAINHA - ITAPEMA/SP [DÉCADA DE 1970].

O trem de carga corta o cotidiano do Bairro Prainha com riscos de descarrilamento dos vagões, derrame de produtos, ou mais comumente atropelamento de transeuntes, tendo ocorrido casos de mutilação de membros humanos, acidentes fatais com pessoas e animais domésticos (cães e gatos). Meninos e jovens, como seu brinquedo, inadvertidamente pegam carona ao verem passar a composição ferroviária.
A LOCOMOTIVA DO RAMAL FERROVIÁRIO DE CARGA CONCEIÇÃOZINHA-PEREQUÊ ADENTRA O BAIRRO PRAINHA - 2018 [ITAPEMA/SP].
MORADIAS AO LONGO DOS TRILHOS DA FERROVIA DE CARGA - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].
O TREM DE CARGA ATRAVESSA O COTIDIANO DO BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].

Nos anos de 1980, este processo apropriatório intensifica-se avançando por outros terrenos da "Prainha", além da margem estuarina. Ao descontrole tanto da municipalidade quanto da Companhia Portuária. Os barracos, muitos de madeiras remendadas, senão madeirites, aglomerados sobre o chão de mangue, acima d'água em palafitas, sob o risco eminente de incêndio coletivo. Vivendo sérios transtornos do deficiente fornecimento de água tratada, energia elétrica e despejo do esgoto in natura. Sujeitos ao ataque de insetos (mosquitos, moscas), infestação de pragas (baratas, ratos), daí desenvolver problemas de saúde.
AMANHECER NA MARGEM OCUPADA DO BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].

Sendo seus ocupantes, homens e mulheres trabalhadores, gente fugindo do aluguel, porque constituíram família precocemente, há quem avisado por conhecidos garantiu um lote, filhos casados de famílias já erradicadas no bairro, outros pra manterem-se fixados até a chegada de um projeto habitacional, de qualquer forma premidos pela carência de moradia. Oriundos doutras regiões da Ilha de Santo Amaro, e do próprio Distrito itapemense ou cidades vizinhas, quanto ainda de alguns vindos de Estados do nordeste por indicação de parentes ali estabelecidos. Embora tal fluxo migratório nordestino, não seja como nos anos de 1950 e 60.
CAMINHANDO PELA RUA QUARTA - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP] ANOS DE 1980.

A morosa ação do Poder Público dado o entrave burocrático de regularização continuou a marginalizar o Bairro Prainha, tanto mais acirrar as dificuldades sociais das pessoas. É às custas de reivindicações dos populares que mobilizam a Prefeitura a estabelecer a zeladoria e programas sociais. Para recolha do lixo acumulado nas caçambas ou esquinas, desobstrução da drenagem das chuvas, postes de luz no perímetro da comunidade adentrando onde possível, ligação regular de água encanada e também luz elétrica.
MORADORES INSTALAM MANILHA DE DRENAGEM - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].

Pela década de 1990, mostra-se evidente o alastramento dos barracos ao longo de toda à "Prainha". Determinadas condições econômicas, o déficit habitacional dos programas governamentais, empurram essa massa de pessoas a ocupar áreas como o Bairro Prainha. Perigosamente assentados ao lado da Ferrovia de Carga, aglomerados à beira d'água, sobre a antiga Restinga contíguos ante grandiosos Terminais Marítimos.
Mediante a caótica ocupação espontânea que a muito se avizinhava, a solução seria a segregação dos limites do Ramal Ferroviário Conceiçãozinha-Perequê, realocação das moradias nos possíveis terrenos do bairro consolidado, transferência das famílias inscritas em projetos habitacionais do Distrito, sobremodo à espera dos programas de desenvolvimento dos governos eleitos. Quadro qual tendeu a piorar a revelia pelo transcorrer de 4 décadas. 
BARRACOS SOBRE PALAFITAS À BEIRA DO ESTUÁRIO - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].
ALASTRAMENTO DA OCUPAÇÃO DESORDENADA NO BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].

Isso em virtude da curta distância, fácil mobilidade entre ITAPEMA/SP com as cidades do entorno (ônibus, barcas, catráias), servindo como fixação na busca pela empregabilidade no porto, indústria, hotelaria, comércio, mão-de-obra terceirizada ou prestadores de serviços.
Até meados da segunda década de 2000, já somavam cerca de 3 mil famílias instaladas no Bairro Prainha. Da área formal 1. 250 moradias estão inclusas na regularização fundiária.
O BAIRRO PRAINHA VISTO DE CIMA - 2014 [ITAPEMA/SP].
VISTA DO CANAL DO PORTO ÀS MARGENS DO BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].

Salvo as condições econômicas remediadas de uns tantos moradores, certas famílias encontram maior dificuldade. Inúmeras chefiadas por mães criando a prole. Adolescentes e crianças compõem um contingente considerável entre seus residentes. Cotidianamente a brincar na maré, nos trilhos da ferrovia, nas vielas ou redondezas, enquanto os pais trabalham fora. Alguns adultos, seguidos de jovens de baixa renda, vivendo sob circunstâncias de vulnerabilidade social acabam por encaminharem-se no mundo do crime.
OCUPAÇÃO DESORDENADA DA MARGEM DO BAIRRO PRAINHA E O CRESCIMENTO DO PORTO ITAPEMENSE - LITORAL PAULISTA.
A MARGEM OCUPADA DO BAIRRO PRAINHA - ITAPEMA/SP [2010].
BANHO DE MARÉ COM ESTILO - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].
MENINOS BRINCAM ENTRE OS TRILHOS DO RAMAL FERROVIÁRIO CONCEIÇÃOZINHA-PEREQUÊ - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].
O CONTRASTE DO ASPECTO DA OCUPAÇÃO NO BAIRRO PRAINHA E A EXUBERÃNCIA DO TRANSATLÂNTICO [ITAPEMA/SP].
AÇÃO POLICIAL NUMA RUA DO BAIRRO PRAINHA - ITAPEMA/SP [2012]. 

Diversas ações de cidadania, bem como projetos sociais acontecem no Bairro às margens de Itapema/SP, promovidos pelas lideranças comunitárias, entidades, secretarias de governo, associações, ongs, colaborando em minimizar as carências, sobretudo orientar e conscientizar os moradores. Contudo, requer de fato um programa estrutural que venha a sanar as demandas básicas da população. Onde o Bairro Prainha, cenário de documentários, figura como exemplo duma recorrente realidade das periferias brasileiras.
PROJETO HORTA COMUNITÁRIA - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].
CUIDADOS NO CANTEIRO DA HORTA COMUNITÁRIA - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].
 
SECRETARIA DO MEIO AMBIENTE PROMOVE COLETA DE RESÍDUOS SÓLIDOS RECICLÁVEIS - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].
A QUADRA ESPORTIVA UTILIZADA COMO APOIO EM MOMENTOS DE TRIBULAÇÃO DA COMUNIDADE - BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP].

Essa crescente densidade de moradores do bairro, no transcurso do tempo, obrigou que a municipalidade implanta-se equipamentos e serviços públicos. Ainda na década de 1990, tem instalado um Posto de Saúde, mais tarde remodelado em UBS (Unidade Básica de Saúde). Já na metade dos anos 2000, recebe uma Quadra Poliesportiva coberta, proporcionando um equipamento esportivo e de lazer à comunidade. Em Agosto de 2014, começou a entrega de 76 unidades do conjunto habitacional para o Bairro Prainha, no final da Rua Guilherme Guinle. Os prédios erguidos modelo triplex, ou seja comportando 3 moradias, cada unidade possui dois quartos, cozinha, sala, banheiro e área de serviço. Dotado de sistema de esgoto, rede de água encanada, energia elétrica, tubulação de drenagem das águas pluviais.
UBS - PRAINHA (ANTIGO POSTO DE SAÚDE) ITAPEMA/SP.
PRÉDIOS DO CONJUNTO HABITACIONAL NO BAIRRO PRAINHA [ITAPEMA/SP] 2014.

Convém destacar a capacidade de resiliência da comunidade, por exemplo, em criar seu próprio lazer ainda que as condições sejam mínimas. Haja visto, o surgimento de vários times de futebol amador (campo, quadra, rua) disputando campeonatos e torneios. Dentre eles: Meninos de Elite, Unidos do Beco Futebol Clube, Mato Grosso F. C. (fundado em 04/Março/2004).
O VERDE ALTA-TENSÃO DA "PRAINHA".

No quesito criatividade o Bairro Prainha, com raiz sambista, trouxe para a passarela itapemense em antigos carnavais (2013), o G.R.E.S. 'MENINOS DE ELITE'.
Dentro do Movimento Hip-Hop ou Funk da Baixada Paulista tem revelado talentosos rappers e MCs. Cantando alto a mensagem poética, rítmica e melódica das "quebradas", sucesso reconhecido noutras tantas comunidades.
Charles Oliveira da Silva (Charles do Bronx), nascido em 1989, mantém fortes laços sociais na "Prainha", onde amigos e familiares residem. Lutador profissional de Artes Marciais Mistas (MMA-brasileiro), sendo o atual Campeão (Peso-leve) do Ultimate Fighting Championship (UFC). É o maior finalizador da história da organização degladiadora com 14, no total. Noite de sábado, 15 de Maio de 2021 (Houston/Texas - USA), Charles do Bronx ao passar pela guarda do adversário o seu cruzado de esquerda abalou Michael "Iron" Chandler, nisso na sequência aplicou uma cotovelada, mais outro cruzado de esquerda para nocautear o oponente norte-americano, no 2º round, aos 0:19 s. e se sagrou Campeão Mundial UFC 262, vindo a ser o segundo brasileiro a conquistar tal feito. Sem negar a origem humilde, consciente da importância de dar oportunidades, "do Bronx" apoia o Projeto #AFavelaVenceu.
CHARLES DO BRONX (MMA) - CAMPEÃO MUNDIAL UFC 262/2021 - #AFAVELAVENCEU [ITAPEMA/SP]. 
 
Sua parte consolidada, embora o loteamento desarranjado, mas anterior aos trilhos do Ramal Ferroviário de Carga Conceiçãozinha-Perequê, possibilitou o abairramento. Pavimentação de algumas ruas, melhor iluminação pública, fornecimento legalizado de água e luz elétrica, endereço identificável para recebimento de correspondências.
Com o passar dos anos, a melhoria dessas habitações reconstruídas em alvenaria deu aos moradores algum conforto. Além do uso residencial, os imóveis também tem utilidade mista (residência-comércio ou residência-religioso). Desenvolvendo um modesto, porém significativo comércio, tanto como prestadores de serviços. Estão entre estas atividades: mini-mercado, mercearia, quitanda, vendinha, bomboniere, lanchonete, pizzaria, bazar, papelaria, lojinha de roupa, salão de beleza, barbeiro, bicicletaria, ferro-velho, adega, bar, loja de conveniências, manicure, doceira, boleira, quituteira, eletricista, pedreiro, pintor, enfim.

Assim o almejado pedaço de chão, a casa própria, inseridos cotidianamente às mazelas sociais, ensejo de recorrentes operações policiais, manchetes negativas em sites jornalísticos, a estigmatizar sua criminalidade, sendo ali um ambiente suscetível à má índole, coisa que não é a tônica dos lares do Bairro Prainha. Cujo olhar destituído de preconceito identificará cidadãos cumpridores de seus deveres.
Tal como assinala a urbanista Moriel Fernanda Moraes, a consolidação do Bairro às margens de Itapema/SP, tem por parâmetro o direito constitucional à moradia e a inversão da lógica do valor da terra, principais justificativas para o desenvolvimento da área.
E parafraseando a cantiga popular, deixe de ser nosso Bairro pobre "de maré de si".