__________ Itapema, suas histórias... __________

domingo, 13 de agosto de 2017

ARISTIDES, migrante da terra itapemense




Aristides Inácio da Silva [imagem ao lado], pai de Luiz Inácio "LULA" da Silva. Trabalhou no cais do Porto santista durante mais de duas décadas. De origem pernambucana, Ele seria somente mais um esquecido Estivador que carregou sacas de café pelos armazéns do Porto, caso um dos seus filhos (o Presidente Lula) não se tornasse uma figura ilustre no meio sindical e político do Brasil.
Em Setembro de 1945, Aristides Inácio da Silva acompanhava a crescente migração nordestina de trabalhadores para o Sudeste brasileiro, à procura especialmente do Estado de São Paulo e na região da Baixada Paulista, o Porto de Santos. Aconselhado por conhecidos resolve ir para a cidade santista, no Litoral de São Paulo, onde teria uma chance de emprego como Estivador. Um trabalho de acordo com suas capacidades físicas, e para seu padrão, muito bem remunerado. Além do mais, serviço braçal, carregar peso, era quase tudo o que a cidade grande poderia oferece para um cidadão analfabeto.
Ainda no agreste de Pernambuco (Caetés), Aristides, pequeno proprietário de terra, havia desposado, somente no religioso, Eurídice Ferreira de Mello (carinhosamente conhecida como Lindu), de quem já tinha 7 filhos. O homem que Lindu amava, porém, não matinha fidelidade no casamento. Formado na cultura machista de sua época, orgulhoso de sua masculinidade, ele não deixava de cobiçar outros "rabos-de-saia". Sem sequer imaginar as escapulidas do marido, Eurídice cuidava dos filhos devotando carinho. E como suas obrigações eram muitas, acabou por aceitar a sugestão de que uma prima, com cerca de 13 anos, ajudasse no trabalho doméstico. Valdomira Ferreira de Góis (apelidada de "Mocinha"), era uma adolescente formosa, de olhos castanhos.
ARISTIDES INÁCIO DA SILVA E A FAMÍLIA FORMADA COM EURÍDICE INTERPRETADOS PELO ELENCO DO FILME 'LULA, O FILHO DO BRASIL' [2009].

Logo pegou prática nos afazeres da casa. A admiração que "Mocinha" tinha por Lindu tanto quanto por tudo o que pertencia à ela, inclusive seu esposo Aristides, crescia a cada dia. Difícil prever que a decisão de Eurídice ao aceitar a ajuda da prima Valdomira terminaria numa história típica de folhetim. A chegada de "Mocinha" invés de ser banal, provocou uma situação que mudaria sua vida e de toda a família de Lindu.
É impossível reconstruir a estória novelesca em detalhes. Mas o fato, é que Valdomira Ferreira de Góis e Aristides Inácio da Silva se tornaram amantes. Não se denota o quanto ele insistiu neste romance. Ou se foi "Mocinha", quem decidiu conquistá-lo. O que se sabe, é que naquele ano de 1945, Eurídice e Valdomira estavam grávidas ao mesmo tempo, do mesmo homem. "Mocinha" no começo da gestação, entretanto Lindu, bem buchuda, não desconfiava de nada.
As dificuldades de trabalho, bem como das condições de sobrevivência desalentadoras, tendo a esposa e a amante esperando filhos seus, Aristides repentinamente decidiu partir rumo a São Paulo. Assim, em Agosto de 1945, vendeu seu cavalo e disse para Eurídice que dentro de poucos dias subiria no primeiro pau-de-arara em direção à cidade grande. O motivo, ele alegava, era a seca. Não tinha jeito de plantar, manter um rebanho. Iria ganhar a vida no Sudeste, e de lá enviaria dinheiro para o sustento da família.
ARISTIDES INÁCIO DA SILVA MIGRA COM VALDOMIRA PARA O LITORAL PAULISTA - CENA DO FILME 'LULA, O FILHO DO BRASIL'.

Fazia um dia enevoado sob o sol árido, Aristides Inácio da Silva fechou sua mala de couro remendado. Os olhos de Lindu transbordaram do pote, seus filhos enfileiraram-se na soleira da casa, tentando decifrar aquele evento incompreensível. A esposa observou Aristides sumir na poeira da distância. Agora estava só, o filho Luiz Inácio ("Lula") na barriga, o qual nasceria dali dois meses... Poucos quilômetros adiante, embaixo da sombra de um imbuzeiro à margem da estrada, Aristides encontrou Valdomira ("Mocinha"). Fizeram hora ocultos na vegetação do Sertão, nisso caminharam juntos até a venda de onde sairia o pau-de-arara e partiram. Primeiramente para a capital Recife e depois a jornada marítima até São Paulo. A viagem precária anunciava ao casal recém-amasiado, que seus dias não seriam fáceis. Rememora Valdomira Ferreira de Góis:
"(...)Vim com o pai dele [Lula] para São Paulo. Eu vivia lá sozinha, sem pai. Não conhecia a família de Aristides até minha mãe se mudar para lá, onde foi trabalhar de alugada. Eu não pensava nada naquele tempo. Ele não falou nada pra mim. Mandou uma mulher perguntar se eu queria ir embora mais ele. Eu achei que era pra vir trabalhar pra cá. Aí vim. Tinha uns 16 nos, era mocinha. Fugimos de noite. Fugi porque não pensei em nada..." - Eurídice sempre fora boazinha, prima de "Mocinha" por parte de pai. Seu tio era pai de Lindu. Valdomira vivia e comia na casa dela porque a mãe trabalhava lá, conforme diz numa entrevista, e acrescenta.
"(...)Lá no Norte, o pai do Lula nunca falou nenhuma besteira para mim. Quem me iludiu para vir foi a Alzira, me chamou quando vinha da escola: "O Aristides perguntou se você quer ir pra São paulo mais ele." Ele sofreu por minha causa. Eu era de menor. Ele foi preso em Recife, não ficou comigo. Eu fiquei com umas meninas num hotel. Ele mentiu que eu era irmã dele, mas os documentos não marcavam. Aí arrumamos uma passagem de navio pra ir embora pra Santos. Quando nós embarcamos no navio foi a mesma coisa. Eu fiquei no albergue e ele preso, lá no Rio de Janeiro. Depois ele ficou livre. Aí não me separei dele não, ficava chato ficar sozinha por aqui. Se voltasse para o Norte iam falar mal de mim. Então fiquei..."
ITAPEMA/SP NA MARGEM ESQUERDA DO PORTO [BAIXADA PAULISTA] 1939.

Ao chegar na região da Baixada Paulista para trabalhar no Porto de Santos, estes migrantes nordestinos compulsoriamente abrigavam-se em áreas urbanas mais baratas, com aluguel menos caro, de forma provisória nos quintais de parentes, buscando se estabelecer. ITAPEMA/SP, do outro lado do Porto, na margem esquerda da Ilha de Santo Amaro, apresentava-se como opção de moradia. Sua localização defronte a zona portuária, serviços regulares de transporte com as cidades do entorno e oportunidade de fácil habitação, possibilitava à massa trabalhadora permanecer e empregar-se na atividade laboral.
Inesperadamente naqueles primeiros momentos de estadia, Aristides descuidado sofreu um acidente. Uma lata enferrujada rasgou seu pé descalço, atingindo o osso. Caiu doente, o diagnóstico da Santa Casa de Misericórdia seria tétano, a infecção que surgiu no ferimento quase o derrubou para sempre.
Aristides era ensacador de café no Porto de Santos, exercendo a profissão de estiva como avulso. No local de trabalho faria amizade com Ari da Silva Souza, empregado da Companhia Docas, mestre-caldeireiro e inventor de ferramentas de utilidade portuária, que abrigou o migrante nordestino no porão de sua casa por quatro dias quando o amigo necessitou.
Contudo, passada as agruras iniciais para os amásios, Aristides providenciaria residência num típico chalé itapemense, na Rua Minas Gerais Nº 275, Bairro Vila Alice, vivendo maritalmente com Valdomira Ferreira de Góis, a formar uma segunda família. Pretendia uma situação financeira mais estável, enfim viver do seu trabalho e ganhar a vida.
RUA MINAS GERAIS (BAIRRRO VILA ALICE) - ONDE MOROU ARISTIDES INÁCIO DA SILVA [ITAPEMA/SP] 2011.

Pojucã da Silva Souza, 61 anos (filho do amigo Ari, vizinho de rua), trabalhador portuário, que também conviveu intimamente com Aristides conta sobre ele, na reportagem de Bruno Merlin:
"Ele era um homem forte, alto e cumpria seu trabalho com eficácia, carregando várias sacas de café nos ombros..." - Como naquela época ganhava-se por produção, Aristides trabalhava muito faturando um bom salário.
O agora estivador Aristides Inácio da Silva mandava de vez em quando algum dinheiro para o Distrito de Caetés, onde deixara sua família primeira. Também enviava e recebia notícias através de cartas que seus amigos alfabetizados ajudavam a escrever e entender. Lá no semi-árido pernambucano, do município de Garanhuns, a enganada esposa Eurídice esperava naquela incerteza, seus filhos inseguros.
"Para nós, naquele tempo, não tinha esse negócio de chorar. Ele disse que vinha trabalhar e mandar dinheiro. E mandava. Não todo mês, quando dava. Era difícil chegar..." - Se alembra o filho Genival Inácio da Silva, o Vavá.
Aristides era um trabalhador honesto, ensacador de café competente, um dos melhores, dos mais fortes, e consciente da categoria à época. Sem ser politizado, admirava Getúlio Vargas e Luiz Carlos Prestes. Embora estivador tinha o hábito de ir trabalhar alinhado, de terno e gravata.
Mas, nada indica que Aristides pensasse num desenlace definitivo com a esposa Eurídice. Cinco anos depois (1950), retornaria a terra natal de visita. Ocasião inclusive em que apresentou à sua primeira família, os três filhos tidos com a mulher Valdomira ("Mocinha"). Todavia, sem mencionar nada a respeito do amasiamento. Momento em que também veio a conhecer seu filho Luiz Inácio ("Lula'). O menino de cinco anos de idade, o vê como uma aparição:
"- Quem é esse homem?..." - Pergunta ao encontrá-lo.
Aristides contou que havia "andado embaixo da terra", referindo-se espantado aos túneis da Via Anchieta, em direção à Baixada Paulista. Ainda nesta rápida estada, a esposa engravidaria então da filha "Tiana" (Rute). De volta para ITAPEMA/SP, por insistência de Lindu, bastante cabrera, traz consigo o  filho Jaime.
Nesse contexto da migração, fixando-se ao lugar, Aristides Inácio da Silva tornou-se um legítimo representante do tecido social formador do Distrito itapemense, agregado à sua população originária, que lhe acrescentaria uma outra característica cultural marcadamente nordestina.
Em Dezembro de 1952, quando "Lula" tinha apenas 7 anos de idade, Eurídice decidiu migrar para o Litoral do Estado de São Paulo com seus filhos, a fim de reencontrar o marido estivador. Acreditando que Aristides fizera esse pedido. Mas, na verdade fora invenção de seu filho Jaime, o qual escreveu dizendo para a mãe ser este o desejo de Aristides, reunir a família. De fato, a carta era do pai, que ditou o texto para o filho escrever. Aristides dizia que estava mandando dinheiro, e que Lindu continuasse por lá cuidando bem de sua gleba de terra. Afirmava ser a vida por aqui muito difícil, embora trabalho não faltasse.
"Meu pai não sabia ler. Eu também não sabia, nem sei até hoje. Essa é a verdade. Mas sabia fazer rascunho. Eu tava apanhando que nem cachorro velho e sozinho. Sofrendo como um condenado. Ele mandava notícias pra mãe, falando em saudade, dizendo que tava tudo bem. Mas era só a carta que tinha saudade, não o pai. Como ele não sabia ler, aproveitei o embalo..." - Jaime escrevinhou em algumas linhas diferente das ordens de Aristides:
"Lindu,
vende tudo e vem pra cá viver comigo. A vida aqui é melhor. Estou te esperando. Aristides." - Mas isto o filho não leu. O pai pediu pra ver a carta. E olhou com cuidado. Porém, era cego para o alfabeto.
Ou em outras palavras, do jeito que conta Jaime:
"(...)Vocês vão morrer de fome aí. Vendam tudo e venham pra cá."
Após treze dias de viagem em um pau-de-arara (caminhão carregado de gente na carroceria) desceram num lugar do Bairro do Brás, na Capital Paulista.
"(...)O pau-de-arara parava nos postos de gasolina pra gente dormir, pra comer farofa. Os porcos vinham roubar a comida da gente a noite. Era só poeira..." - Lembra Vavá da viagem dificultosa, o caminhão apinhado de retirantes e seus parcos pertences.
Tomaram um táxi, descendo a Via Anchieta (recém inaugurada) até a Baixada Paulista, no Porto de Santos, onde chegaram ao ITAPEMA/SP, na Ilha de Santo Amaro.
"(...)Eu só me lembro da gente na porta do balcão do Porto de Santos. E da frustração da minha mãe..." - Recorda Luiz Inácio.
ITAPEMA/SP ÀS MARGENS DA ILHA DE SANTO AMARO - LITORAL PAULISTA [DÉCADA DE 1960].

Dentro da Barca, Lula e seus irmãos, sujos e descabelados, seguravam em suas trouxas com roupas gastas, fotos de família, coisas mínimas. Lindu carrega o maior patrimônio estimado, os filhos tidos com Aristides, acreditava que sua vida recomeçaria naquele instante... Para alguém acostumado a ver pequenas quantidades de água, deslizar entre navios enormes parecia coisa de outro mundo. Logo, a Barca atracaria, num reencontro com o marido... Quando desceram da embarcação na Estação de Itapema, conseguiram informações sobre o estivador Aristides. Ele estava próximo, e alguém foi avisá-lo de que sua família havia chegado. Aristides contrariou-se... "Só me faltava essa!" Chamou Jaime, que descansava recostado num canto. Os dois saíram rapidamente. Em frente a um bar, Eurídice e seus filhos esperavam ansiosos. Mas, seus sorrisos se dissolveram quando olharam nos olhos de Aristides. Viram neles a cor da raiva. A boca contraída de indignação.
"PONTÃO DAS BARCAS" EM ITAPEMA/SP [ANOS DE 1960].

"(...)Ele [Jaime] escreveu para nós em 1952. Foi coisa dele dizer para a mãe que era pra vender tudo e vir embora para São Paulo. O pai não estava nos esperando. A reação dele foi braba..." - Comenta José Ferreira, apelidado "Ziza" (hoje Frei Chico).
"(...)O pai não sabia que eu tinha escrito e estranhou quando chegaram aqui. Chegou a turma toda, eu não conhecia mais ninguém. Ele ficou macho... Tava morando com a outra, não sabia o que fazer..." - Aristides nunca soube quem os tinha chamado, conta Jaime.
Noutro depoimento à jornalista Denise Paraná acrescenta Vavá:
(...)Chegamos em São Paulo e andamos pela primeira vez de automóvel. Uma maravilha. Um táxi. Um chevrolet 51. Era uma alegria a sensação. Descemos no Armazém VIII, fomos atrás do meu pai. Ele era carregador de café, quando ele nos viu, só não matou a gente porque não pôde. Tinha outra família. E casa pra todo mundo?..." - Cismou então que deveriam ter trazido seu cachorro de estimação ("Lobo"). Mas como?... Deixaram lá o bicho abandonado! Pra ele era preferível ter vindo o cachorro.
"(...)Meu pai não queria que eles viessem..." - Reintera Jaime, que morria de saudade.  
Aristides talvez considerasse de forma conveniente poder ficar com duas famílias, sendo mínimo provedor delas. Pelo caráter adquirido da condição de marido, próprio daquela época. Envolvendo as mulheres numa relação ambígua dentro do aceitável. Uma residindo no Distrito itapemense, a outra em Caetés (PE).
Ficara evidente que ele pretendia ter uma nova vida na cidade grande. Eurídice e os filhos ao lado atrapalhavam.
Em ITAPEMA/SP, surpresos, tiveram de dividir a convivência de Aristides mais a família formada com Valdomira, sob o mesmo teto.
"(...)Depois, aqui, eu queria conversar com ela, mas ela não queria. Ela tinha raiva de mim, mas eu não tinha raiva dela. É que eu vim com o marido dela..." - Comenta "Mocinha" numa entrevista.
Aliás, o excepcional da circunstância, ter duas famílias, casado com Eurídice e amásio de Valdomira (prima da esposa), que convivera com o casal, numa certa semelhança destes particulares escândalos domésticos, guarda exemplos em algumas antigas famílias de origem nordestina, as quais se constituíram em ITAPEMA/SP. Muito por conta da distância, os encontros e desencontros da migração, dos novos vínculos afetivos e relações estabelecidas.
A convivência difícil, motivada pelo marido (extremamente rigoroso com seus filhos), pois era rude, muito bruto, sem nenhum carinho por eles. E diante do inusitado daquela situação do casamento. Levou Lindu a pedir para sair de casa com a filharada. Aristides passou a morar noutra, vizinha a de Eurídice, também na Rua Minas Gerais - Bairro Vila Alice.
"(...)A mãe do Lula ficava na casa grande porque tinha muitos filhos..." - Menciona Valdomira.
"(...)Ficamos um ano e pouco com ele. Levou a família para a outra casa e nós ficamos morando na casa que ele morava. Era muito ignorante. Maltratava muito a gente. Minhas irmãs trabalhavam em casa de família, os mais velhos também trabalhavam. A gente não podia sair de casa, não podia ir à escola..." - Lembra José Ferreira, o "Ziza".
A PERSONALIDADE EXTREMADA DE ARISTIDES INÁCIO DA SILVA TORNAVA A CONVIVÊNCIA DIFÍCIL COM A FAMÍLIA - CENA DO FILME 'LULA, O FILHO DO BRASIL' [SET DE FILMAGEM ITAPEMA/SP].

Aristides dera para negligenciar a família tida com a primeira mulher. Era do tipo de homem de mandar em casa. Que lhe devessem respeito incondicional. Prepotência das razões. Corrigindo tudo a base de surras, como bem aprova o senso comum. Ter duas, três mulheres conforme lhe aprouvesse. Estúpido no trato familiar, proibia os filhos até de ir ao cinema (nesse tempo o Distrito mantinha dois: Cine-Teatro 'Itapema' e Cine 'Avenida'), além de coisas corriqueiras como jogar bola na rua ou comer uma guloseima sem sua autorização.
"(...)Uma ocasião ele  chegou, passou em casa e a gente tava chupando sorvete. Queria saber onde arrumamos dinheiro. Ameaçou a gente. Bateu na minha irmã. Era muito ignorante..." - Fala José Ferreira, guardando alguma mágoa.
"(...)Ele só passava na casa da minha mãe pra ver como as coisas estavam e dormia na casa da outra. Nós trabalhávamos [Jaime empregou-se num estaleiro do Itapema]. Era do trabalho pra casa, não podia fazer nada. Ele sempre ajudou mais a outra família. A gente se virava..." - Diz Jaime, sem compreender o pai.
Todos os dias, Lula e o irmão José Ferreira (Frei Chico) eram encarregados por Aristides à buscar água nas bicas de ITAPEMA/SP, também para a segunda mulher do pai, Valdomira. Em troca ela lhes dava pão velho:
"(...)A mãe pedia para a gente não aceitar, mas nós comíamos escondido..." - Confessa Luiz Inácio. Noutro depoimento reintera:
"(...)Nós não tínhamos vida de criança, não tinha esse negócio de brincar, jogar bola, se divertir..."
Seus modos ríspidos levavam ao retraimento afetivo das crianças, as quais temiam Aristides. Por dar a entender serem os filhos um estorvo na vida dele.
"Quando estava chegando a hora de meu pai chegar em casa, era uma tortura para todos nós..." - Comenta Luiz Inácio, "Lula". - "(...)Meu pai era aquele tipo de pai que o filho não tinha prazer de chegar em casa, porque só batia, gritava, não tinha uma palavra de carinho com a gente..." - Durante uma surra, Ziza apanhou tanto que fez xixi nas calças.
"(...)Minha mãe não tinha opção... (...)Precisava sustentar os filhos e dependia do meu pai." - Pondera Genival Inácio da Silva, o Vavá.
Durante este período Lula foi alfabetizado no Grupo Escolar 'Marcílio Dias' e teve como professora D. Cassiana. Apesar da falta de incentivo do pai (analfabeto) achando que seus filhos não deveriam ir à escola, mas apenas trabalhar ou só servia para as filhas aprenderem a escrever cartas aos namorados. Entretanto, sem saber ler, Aristides sempre comprava o jornal do dia. Luiz Inácio guarda em suas recordações sobre o pai, esse modo contraditório de ver a vida por Aristides. Contou ele para o jornalista Mário Morel:
"(...)Eu me lembro que minha mãe me colocou na Escola e ele não queria. Xingou minha mãe. E no primeiro dia que eu fui na Escola, quando eu estava chegando, ele estava em pé no portão como se fosse um todo-poderoso, para me dar bronca porque eu tinha ido para a Escola. Eu cheguei meio escondido, atrás de uns pés de cará, com medo de chegar perto dele."
MILHEM CORTAZ INTERPRETA ARISTIDES INÁCIO DA SILVA - CENA DO FILME 'LULA, O FILHO DO BRASIL' [SET DE FILMAGEM ITAPEMA/SP].

Aristides Inácio da Silva deu para beber com frequência. Descarregar nos filhos suas frustrações. Totalmente insensível aos sentimentos da família, duma crueldade mesmo.
"(...)Meu pai era um homem muito rude. Um dia nós estávamos todos juntos. Meu pai comprou sorvete. Eu nunca tinha chupado um sorvete na minha vida. Meu pai deu um sorvete para cada um dos filhos dele com a outra mulher. Aí sobrou um. Ele esticou para me dar e depois não deu, dizendo que eu não sabia chupar sorvete. Até hoje eu lembro. Isso me marcou muito. Porque o mínimo que a gente espera de um pai, é que ele ensine o filho a chupar um sorvete..." - Revela Lula. "(...)Era muito ignorante. Levantava cedo, tomava café, comia o pedaço de pão dele. Depois pegava o restante e botava numa lata em cima do armário e ninguém podia comer." - Não poupava nenhum da sua numerosa prole. Certa vez a filha lhe pediu um naco de pão-doce, e Aristides fez ouvidos mocos, deu para o cachorro ao pé da mesa.
Aristides trabalhava demais para sustentar os vários filhos e a duas mulheres que tinha. Embora faturasse respeitável salário exercendo a função de ensacador de café, mais até que a maioria dos estivadores, possuía muitas despesas a pagar devido a quantidade exagerada de filhos, os quais mantinha.
A única coisa que ensinou aos filhos foi caçar. Era muito conhecido na região: Aristides, o caçador. No fim-de-semana ele não trabalhava para poder fazer caçadas e se divertir.
"(...)Ele nos levava nas caçadas. Acendia uma fogueira à noite para espantar as cobras e saía para caçar. A gente dormia ali, com medo..." - Menciona Luiz Inácio.
Além de lazer, a caça garantia alguma alimentação para suas famílias, economia das despesas domésticas, lucro com a venda para conhecidos, tanto como prestígio no Sindicato:
"(...)Aristides sempre dava o produto de suas caças para os diretores do sindicato. Dessa forma, ele nunca ficava sem trabalho, já que o próprio sindicato era encarregado de escolher os trabalhadores que as empresas requisitavam..." - Diz o amigo Pojucã da Silva Souza. Ressaltando ainda, que o Estivador também criava vários cães, mais de 20, e muitos o seguiam fielmente.
Neste aspecto Aristides Inácio da Silva, migrante devidamente integrado, reproduz um antigo e típico hábito itapemense de exploração da Restinga no Distrito, das matas adjacentes nas cidades vizinhas, visando a coleta de víveres (palmito, goiaba, limão galego, taióba, bucha, lenha). Pesca artesanal no estuário, além de rios da região (siri, peixes, camarão). Apanha de crustáceos pelos manguezais (caranguejo, marisco, berbigão).
A Restinga remanescente de ITAPEMA/SP era pródiga de alguns recursos naturais. Moradores extraíam areia, xaxim, bambu, ticum (coquinho), brejaúva, ervas medicinais e plantas ornamentais: bromélias, samambaias. Também caçavam pequenos animais: jacarés, capivaras, preás, teiús, saruês, jabutis e rãs. Pássaros canoros: coleirinhas, canários-da-terra. 
Nas horas de folga, Pojucã (vizinho da Rua Minas Gerais) tinha o hábito de caçar com Aristides, admirado por sua perspicácia na atividade e pela vontade audaciosa de adentrar nas matas atrás de animais como antas, tatus, cotias, veados e porcos-do-mato.
Pois comportava-se assim, de um jeito na rua. Diferente dentro de casa. Para os outros sempre muito bom. Para os filhos, ruim.
Aos domingos, Lula (Luiz Inácio) e Ziza (José Ferreira) a mando de Aristides iam apanhar no mangue caranguejos, mariscos e lenha nas matas dos arredores. Outras vezes empreendiam pescaria na Bocaina utilizando-se da "chata" do pai, lá atracada, como forma de suprir as necessidades da família.
Um dia, num passeio a "chata" inundou, rememora Lula, "e eu não sabia nadar. Fiquei parado, esperando. Meu pai me derrubou na água com uma remada na cabeça. Meus irmãos me salvaram..."
Aconteceu que roubaram o barco de Aristides, e ambos apanharam pra valer. O pai batia com cinto, vara, pedaço de corda, aquilo que tivesse a mão. Lula pela idade apanhava menos. Doutra feita, depois de mais uma "pisa" sofrida por Ziza, partiu pra sovar Lula:
"(...)Quando ele veio bater em mim, minha mãe não deixou. Aí ele deu uma mangueirada na cabeça dela e isso foi o começo da separação."
ARISTIDES INÁCIO DA SILVA PENSAVA CORRIGIR OS FILHOS À BASE DE PANCADAS - CENA DO FILME 'LULA, O FILHO DO BRASIL' [SET DE FILMAGEM ITAPEMA/SP].

Insatisfeita devido ao alcoolismo do marido, a condição a que fora relegada, Eurídice resolveu partir em 1954 para a Capital paulista.
"(...)Um dia a mãe descobriu que a outra mulher do meu pai ganhava mais coisas que ela. Tinha uma quitanda e o pai mandava entregar os alimentos. Aconteceu de entregarem errado. A mãe foi acumulando raiva..." - Diz Luiz Inácio. Daí um certo dia, Aristides quis bater em Lindu por causa de uma roupa muito velha, que não segurava mais ponto de costura. Outra mulher, ela suportava. Mas apanhar, não.
"(...)O pai nunca tinha botado a mão na minha mãe, até o dia em que pegou uma calça descosturada e esfregou no nariz dela..." - Menciona Maria da Silva, filha do casal.
Eurídice disse naquele momento desacorçoada:
"- É a primeira e última vez. Quando voltar, não vai me encontrar." - Deu um basta.
Tudo agravara-se brutalmente desde que perdeu os recém-nascidos gêmeos prematuros, de um parto feito em casa. Lindu precisou ser hospitalizada e quase morre. Aristides não tomou conhecimento, os gêmeos faleceram dias depois.
"(...)Quando minha mãe deixou o meu pai, disse para ele: Se eu te encontrar na rua, vou passar de um lado da calçada e você do outro..." - Comenta Maria. Eurídice cumpriu a palavra. Jamais quis saber dele de novo. Sequer notícia.
ARISTIDES INÁCIO DA SILVA (MILHEM CORTAZ) EURÍDICE (GLÓRIA PIRES) - CENA DO FILME 'LULA, O FILHO DO BRASIL' [SET DE FILMAGEM ITAPEMA/SP] 2009.

Desvencilhar-se da primeira família em nada lhe traria sossego. Valdomira Ferreira de Góis (a segunda mulher) e seus filhos, não escapariam aos rigores de sua personalidade, acrescida da agressividade intensificada pelo alcóol. Há quem se lembre, principalmente moradores antigos do Bairro Vila Alice, de seus modos peculiares, o trato então dispendido aos familiares.
"(...)Para mim o Aristides nunca fez nada. Só uma vez puxou meu cabelo porque dei um empurrão nele. Um dia me deu um tapa e eu enfiei uma faca na barriga dele..." - Comenta "Mocinha". De Aristides Inácio da Silva, Valdomira gerou 10 filhos que se criaram.
"Mocinha" o deixou por três vezes querendo dar um fim aquele relacionamento. Inclusive recebeu abrigo com seus filhos, na casa de Lindu, na Vila Carioca, em São Bernardo do Campo/SP. Mesmo após os dissabores familiares que Valdomira provocou à prima.
Enganados pela promessa de que o pai deixaria de beber, voltavam para casa. Um dia, Aristides bateu nas costas do filho José Rubens até sangrar.
Suas atitudes descabidas extrapolavam a racionalidade. Se transformara ruim para todos, atentava contra a própria família.
"(...)Eu saí de casa porque ele queria matar os meus meninos todos. Um dia botou a espingarda, a menina dormia na cama, a espingarda disparou, quase pega na cabeça dela. Eu fui obrigada a sair..." - No ano 1967, Valdomira Ferreira de Góis se separou do marido, indo residir em Itanhaém/SP. Aristides depois mudaria da Rua Minas Gerais, perdendo contato como velhos conhecidos. A família fragmentou-se por localidades da Baixada Paulista, vencendo à própria sorte. O estivador amancebou-se duma terceira mulher, trabalhava e vivia ao sabor da cachaça, segundo os próprios preceitos, ainda morando no Distrito itapemense.
Anos mais tarde Valdomira Ferreira de Góis retornou para ITAPEMA/SP. Alguns filhos de Aristides e "Mocinha" fixaram-se por aqui:
João Ignácio da Silva, apelidado de "Lulinha", dada a semelhança com o irmão mais ilustre, por parte de pai. Morava com a mãe Valdomira. Foi balconista na Padaria 'Real Brasil' (Av. Santos Dumont), em ITAPEMA/SP.
Germano Ignácio da Silva, último dos filhos de Aristides mais Valdomira. Residente na Rua Santa Isabel Nº 240, Bairro Pae-Cará. Um Emancipacionista do Distrito itapemense. Pai de Nathan Lyneker Rodrigues Ignácio da Silva, estudante da Escola 'Walter Scheppis', neto de Arisitides. Germano (ex-Prático), aos 41 anos de idade, já trabalhara como segurança, motorista de táxi e detetive. Empregou-se numa prestadora de serviços sob controle da Petrobrás.  

Aristides Inácio da Silva [imagem ao lado] fazia jus a mítica estirpe nordestina. Homem de brios, sujeito honrado. Aristides, o caçador. Mateiro experimentado. Tiro certeiro de espingarda calibre "22". Conhecido naqueles tempos em ITAPEMA/SP como o "Homem das 7 mulheres", dado sua história pitoresca de casamentos. Reconhecido pelos locais do Distrito quando chegava. Um "cabra valente", sem aceitar desaforos ditos, não fugia de contenda havida de "peixeira".
Envolveu-se em sérias confusões em ITAPEMA/SP. Certa vez, brigou com um compadre jogando dominó, durante a luta corporal foi ferido de faca entre as costelas, que o fez perder um pulmão. Numa ocasião, Aristides recebeu 14 facadas após uma discussão. Socorrido ao hospital em condições precárias, sobreviveu. Provavelmente pelo seu preparo físico e força invejável.
O alcoolismo jamais permitiu que dedicasse aos filhos, bem como às mulheres o carinho e respeito que estes mereciam. Seu filho Jaime só voltaria a encontrar o pai de novo, no ano de 1963. Aristides estava numa pingaiada danada. Um tio o trouxe para morar com ele, visando ajudá-lo. Mas não parava de beber e fugiu. Luiz Inácio, Lula, veria o pai poucas vezes depois de adulto.
Aristides trabalhou muito, sempre como Estivador, até se aposentar na década de 1970. Embora fosse sindicalizado e atuante raramente é lembrado pelos estivadores, os quais trabalharam nessa mesma época no Porto, pois naqueles tempos não tinha o status de "Pai do Presidente da República", Luiz Inácio "Lula" da Silva. Ao todo foram 18 filhos, que se criaram adultos. Nunca deixou faltar comida em casa. Homem muito honesto, não devia nada para ninguém. Era demais correto nas coisas onde empenhava a palavra.
Entretanto, com a inatividade começou a embriagar-se constantemente. Aristides Inácio da Silva, migrante nordestino de nascimento, Itapemense por adoção, morreu vítima de cirrose hepática, às 02:05 h, do dia 03 de Maio de 1978, sendo enterrado pelo dia seguinte, no Cemitério Distrital de Vicente de Carvalho (ITAPEMA/SP).
"(...)Ele não deixou nenhuma saudade." - Confessa o filho Jaime. Aristides, um progenitor de poucas boas lembranças na memória da família.
Sem remorsos ou alguma dó pelo pai, Luiz Inácio elabora este sentimento filial:
"(...)Mas também não me queixo, não quero ficar remoendo. Hoje olho para trás e não tenho ressentimento. Milhões de pessoas passam por isso. Uns conseguem superar, outras não..." - Disse Lula para Eliane Brum (ÉPOCA).
A figura paterna entre os filhos parece carregada de ambivalências nos depoimentos. Seja quando Luiz Inácio cita o pai espelhando-se no seu trajar alinhado ou a sua honradez, quanto em comentários ressentidos dos outros irmãos.
O velório de Aristides foi acompanhado por antigos vizinhos da Rua Minas Gerais, alguns colegas. Teria sido sepultado como indigente, embora conste registro e pagamento por terceiros (campa 2, quadra T), nenhum dos familiares sabedores do fato quis assumir a responsabilidade do corpo, permanecendo numa vala-comum. Quando o pai faleceu, só descobriram 10 dias após o ocorrido. Luiz Inácio recebeu uma carta e deu a notícia aos irmãos.
"Morreu. Tava feito..." -  Enfatiza o filho mais ilustre. Era revirar uma dor pessoal. As famílias haviam feito cada uma o seu caminho, seguido sua vida. Quase sem contato.  
Seus restos mortais ficaram por cinco anos (1978 à 1983) à espera de um parente que lhe desse um túmulo perpétuo. Conta José Ferreira, o Ziza:
"Um ano antes dele morrer, eu, minha mulher, o Lula e a Marisa [Letícia] fomos visitá-lo. Deixamos endereço, telefone, para um cara no boteco. A outra família já havia abandonado o meu pai, porque também era muito ruim para eles. Ele ficou doente mas não nos avisaram. Uma outra mulher que tomava dinheiro dele, disse que não tinha parente nenhum, que podia enterrar..." - Como os familiares não quiseram, nem providenciaram a transferência dos restos mortais de Aristides para um jazigo com lápide e epitáfio. Como ninguém prontificou-se em reclamar, passado o período os restos cadavéricos foram exumados, então colocados dentro de um saco, que amarrado e com uma etiqueta de identificação, seria transferido para um ossário do Cemitério da Consolação (ITAPEMA/SP).

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