__________ Itapema, suas histórias... __________

quarta-feira, 30 de outubro de 2019

O Etílico Hábil DR. FERNET

DR. FERNET VIVE NA MEMÓRIA DOS SEUS EX-PACIENTES ITAPEMENSES.

A placa na porta de entrada indicava a especialidade: Cirurgião-Dentista. Todavia, seu nome por extenso em letras garrafais poucos lembravam. Ficou conhecido mesmo como Dr. Fernet. Atendia num consultório da Av. Thiago Ferreira, no centro do saudoso Itapema, pelos idos anos de 1970 e 80. Um dos pioneiros nesta prática da clínica dentária aqui no Distrito.
Suspensa num canto uma moça sorria-lhe, dentes branquíssimos à mostra, numa propaganda de laboratório. O diploma ostentado na parede da aflita sala de espera atestava a sua competência. A distinção do sobrenome Fernet se dera não por alguma descendência estrangeira do Doutor, sobretudo a um certo uso de alcóol, não aquele de 90° para assepsia, mas a uma popular bebida chamada Fernet, a qual o Dentista muito apreciava. Daí que caiu na boca do povo.
Seu diagnóstico não raramente sumário, verificando com uma careta desaprovadora o espelho bucal. Extração definitiva. Embora o dente estivesse apenas cariado, até passível de restauração no entender leigo do paciente.
- ...Você não vai poder pagar a obturação mesmo. Vamos arrancar isso fora! - Ultimava o Dr. Fernet. E dada as condições financeiras de alguns itapemenses era escolher a amarga decisão, ficar banguela ou a desesperadora dor de dente. Ao que sucumbia um pré-molar mal escovado, senão um destoante canino.
Um dentuço que descuidara da escovação chegou lá, não havia cimento dentário capaz de cobrir a dentina corroída. Tanto que o Doutor foi incisivo.
Caso tivesse dinheiro, dentadura ou "ponte", com ganchos pelo "céu da boca" poderia ser providenciado. Pois sabia quando possível restituir a artificialidade de um sorriso.
- Doutor, acho que ainda não sinto a anestesia. - Queixava-se uma paciente, iniciado os procedimentos.
É psicológico... Já, já faz efeito. Arranco que você nem percebe. - Respondeu o experiente Fernet.

Podia-se encontrá-lo além do consultório, por volta da hora do almoço, pelo centro comercial de Itapema no seu traje imaculado, tomando o aperitivo "rabo de galo", numa das mesas dos bares enquanto aguardava a refeição. Espairecendo à tarde nos balcões das padarias, depois de um dente difícil, com um cálice de Fernet.
Se alguém tinha algo a criticar, tratava-se de uma bebida etílica (obviamente), de origem italiana, um tanto amargosa, obtida através da maceração no alcóol de diversas ervas, bem como raízes medicinais, entre estas o ruibarbo e a gentiana, a quina, alóes e o agárico. Usado como digestivo e salutar tônico... Quem poderia negar que houvesse medicina naquilo?
Muitos iam socorrer-se à clínica do Dr. Fernet. Tomados de coragem e temor pessoal. Após acomodar a vítima, devo dizer o paciente na sua cadeira de tortura, digo, de Dentista, dispondo ele de tratamento duvidosamente tranquilizador, porém dum sadismo meticuloso em manipular os instrumentos de odontologia... Aquele estalar das luvas de látex. O preparo da seringa de injeção, quando quebrava o pescoço do tubete contendo Cloridrato de Lidocaína, isso visto num reflexo duma campânula metálica, o esguicho lacrimoso da agulha hipodérmica... Surgia um homem de jaleco talhado e máscara branca, fazendo outro ajuste mecânico da cadeira. Era visível a tensa imobilidade do paciente. Estranhas hastes articuláveis logo acima da cabeça... Pedia então que abrisse a boca, pedido esse atendido com certa relutância. Entre os dedos emborrachados a seringa de anestesia à vista dos olhos incrédulos. Nisso acionava um sugador ruidoso, punha-se a direcionar um foco de luz ao fundo da goela. Certo de que o anestésico estancaria toda dor... Boticão em punho erguido, Dr. Fernet invadia boca adentro atrás do inútil cariado, agarravam rígidas tenazes reluzentes a extrair a raiz do problema.

Mas havia também, momentos infernais de ranger de dentes a fórceps. Dentes fiéis às mandíbulas de seus donos, insistiam em não se deixar arrancar. Numa luta renhida com o dente, quase montado no peito do paciente a extirpar o persistente molar maldito...
- Anh!... Anh!... Dou.. tor... - O indivíduo boquiaberto a deter o punho do Dentista.
- Calma!... Está saindo... - Testa transpirante atrás da máscara, o cheiro de éter e Fernet do ambiente assim misturados, indicava à pessoa que lançasse fora o sangue e a saliva dentro duma cuspideira. Ele a saborear o gosto da vitória.
Dentes do siso lhe tiravam o juízo. Desafiadores à habilidade do Doutor, por cerca de uma hora o embate se alongava em rounds anestésicos. Desistido de outras posições, de joelhos sobre a banqueta, o impaciente já gemendo ais de dor, mais o mal jeito que sentia na arcada dentária... Enfim, satisfazia-se ao exibir o seu troféu.
Foi escândalo. Certa paciente acusara-o de imperícia odontológica, bateu à porta da clínica, pois ficara um caco de dente preso durante a extração dentária dela. Insistindo que o Doutor retirasse. Dizia sentir quando passava a língua na gengiva.
- Não há nada aí... Se eu puxar com o meu boticão, a Dona fica sem a queixada!... E vê se sossega essa língua... - Talvez não conhecesse a fama dele. Arrancara nesses anos todos de ofício, mais dentes das pessoas de Itapema, do que ela tinha na boca.
Com efeito tornou-se um dos mais falados dentistas do centro comercial do Distrito. Dr. Fernet ainda hoje assombra os sonos temerosos de seus ex-pacientes itapemenses.
    

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